Por Rayssa Lemes Ordonhes
Recentemente foram divulgados vídeos onde o DJ Ivis (que acumula hits de sucesso nas redes sociais) agredia a até então esposa, Pamella Holanda. As imagens, que geraram posicionamentos por parte dos parceiros comerciais do DJ e até mesmo sua remoção de plataformas de streaming, refletiram de um modo geral no debate público sobre a questão e envolveram manifestações de segmentos diversos da sociedade em defesa da vítima. Dentre eles estavam parlamentares, ativistas e cidadãos que, mesmo sem uma ligação direta com a política institucional ou organizações afins, expressaram em seus pontos de vista a complexidade ideológica do assunto.
A pauta do combate à violência doméstica, que teve grande repercussão através do caso, possui muitas nuances quando se trata de uma localização no espectro político. Falar em uma complexidade ideológica não significa rejeitar a possibilidade de existência de pontos em comum entre polos diferentes (comprovada pelo consenso em relação à proteção das vítimas), mas sim uma interpretação aprofundada das motivações e objetivos que levam grupos distintos – frequentemente opostos – a concordarem em uma causa, porém não necessariamente utilizando os mesmos argumentos ou métodos. Motivos esses que vão para além do simplismo das supostas “obviedades” da polarização e têm muito a dizer em termos de conjuntura, articulações de partidos, mandatos e movimentos sociais no Brasil.
Para pensarmos essas conexões, é preciso primeiro retomar as próprias definições de esquerda e direita. No caso, dos estereótipos associados a elas. Longe da ideia de que se deve ignorar esses conceitos e seguir “pra frente”, o que proponho é justamente um olhar mais minucioso sobre eles e suas manifestações concretas, que extrapolam as dicotomias idealizadas.
Voltando ao recorte de tema deste texto: em agosto de 2021, completam-se 15 anos desde a sanção da Lei Maria da Penha. Impulsionados pela legislação, mas também pioneiramente antes dela, começaram a se organizar em igrejas evangélicas brasileiras projetos voltados não apenas para a questão da violência doméstica propriamente dita, mas a uma espécie de ‘atenção integral’ às mulheres, com cultos, materiais informativos e orientações direcionadas especialmente a elas. Em alguns dos mais conhecidos, essa atenção é estendida a outros grupos que compõem a família nuclear e são considerados vulneráveis, como os idosos e principalmente as crianças.
Como bem observado pela pesquisadora Jacqueline Moraes Teixeira, no bojo dessas iniciativas está a preocupação com a manutenção da família enquanto instituição garantidora de uma coesão social pautada nos princípios morais da fé cristã. Sob essa ótica, a agressão do marido à esposa significa também uma afronta à harmonia do lar em sua sacralidade (assim como, em paralelo, o aborto significa uma ameaça à maternidade, um fundamento da própria existência desse núcleo). Através de “cases de sucesso” como o da deputada estadual Damaris Moura em São Paulo, vê-se que a articulação de lideranças nos chamados ‘ministérios de mulheres’ das igrejas está fortemente vinculada ao êxito eleitoral de candidatas pertencentes a esse nicho.
Há um imenso equívoco na concepção generalizante de que evangélicos são um sinônimo automático de direita. É extremamente superficial, aliás, pensarmos em “uma única forma”, ou molde, de ser evangélico. O contexto citado trata, portanto, de um nicho específico desse público, que está inter relacionado a uma vertente também específica em termos políticos: o neopentecostalismo associado ao neoconservadorismo. Não por acaso, esses conceitos estão ligados ao fenômeno da ‘Nova Direita’, que corresponde basicamente a uma adaptação programática e discursiva às demandas impostas pela modernidade – seja através de suas crises socioeconômicas e de temas como desemprego e direitos básicos, ou nos embates inflamados por campos adversários, como a pauta das discriminações sofridas pelas minorias sociais. Ou seja, uma direita conectada com o presente e que fala dos mesmos problemas que a esquerda, porém oferecendo outras perspectivas sobre o por que esses problemas existem e como solucioná-los.
Engana-se quem pensa que fatores que vão ao encontro de conceitos como o patriarcado e os papéis de gênero são as únicas razões atribuídas às violências sofridas pelas mulheres. Segundo o conservadorismo repaginado, esse e outros males são fruto de uma espécie de degeneração moral e ética cuja reversão depende (contraditoriamente, ou não) do resgate de valores tradicionais geralmente atrelados a interpretações de passagens bíblicas – em relação aos quais surgem diversas candidaturas intituladas como porta-vozes dos ‘bons costumes’ e da contraposição às representações do mal. O argumento da defasagem em relação às posturas sobre questões atuais da vida e da sociedade, muito utilizado por setores progressistas críticos à religiosidade, não se aplica aos neopentecostais. Prova disso tem sido o seu poder de conversão, multiplicado pela quantidade de programas na TV aberta e na capacidade de aglutinação através da imagem de uma igreja que não parou no tempo e que, principalmente, ainda é capaz de propor intervenções práticas às angústias ou anseios de seus fieis de uma maneira mais antenada, acolhedora e otimista do que outras denominações mais “ortodoxas”.
Nitidamente, o feminismo em sua totalidade de vertentes e concepções não é uma unanimidade entre quaisquer espectros ideológicos. Mesmo defendendo algumas bandeiras associadas ao movimento, muitas mulheres que ocupam cargos eletivos (ou que se candidatam a eles) não só rejeitam o termo como também enaltecem em seus projetos políticos o fato de serem anti-feministas. Dentre essas bandeiras está a que talvez seja a unificação central, atualmente entranhada nas agendas de políticas públicas propostas por setores da esquerda e direita, dentre conservadores e progressistas. As formas como se manifestam as adesões de diferentes grupos ao combate à violência doméstica, mobilizados nos Três Poderes, no setor privado e na sociedade civil, concatenam diversos aspectos imprescindíveis à análise do contexto político, econômico e social do país atualmente.
Apesar de frequentemente vinculada à esquerda, a própria noção de Direitos Humanos está em disputa. Tanto que atualmente figura ao lado das categorias Mulher e Família em nome de ministério. Curiosamente, o campo político associado a uma interpretação estrutural das manifestações individuais (vulgarmente chamada de “defesa de bandido”) costuma ser implacável e punitivista quando se tratam especificamente dos crimes ligados às minorias sociais, saindo pouco do senso comum e de óticas limitadas – paradoxalmente tradicionais – como a do encarceramento enquanto medida única de manejo dessas situações. A união em prol de uma causa acontece, portanto, concomitantemente a um escancaramento das contradições inerentes a cada “lado”, genericamente falando. Tanto as contradições de fato existentes em termos de coerência, quanto as falsas polêmicas ligadas aos estigmas, como a ideia superficial de que uma mulher evangélica é necessariamente submissa ao marido.
Se queremos compreender de fato os fenômenos políticos em curso no Brasil e as projeções para o pleito do próximo ano, é indispensável a compreensão também da ideia de representatividade. Principalmente, o entendimento do fato de que ela não se consolida apenas sob uma perspectiva e que efetivamente pode, sim, defender ou contrapor uma mesma coisa através de panos de fundo quase que totalmente antagônicos. Na violência doméstica, problema incontestavelmente contínuo no Brasil, tem-se uma referência importante para que sejam esmiuçados os caminhos através dos quais, na política, problemas reconhecidamente comuns podem ser tratados sob lentes distintas. Isto tem muito a dizer em relação a posicionamentos, alianças e prioridades de atuação nas esferas de poder e nas relações estabelecidas com bases eleitorais. Sobretudo, muito a demonstrar sobre os processos da democracia e as heterogeneidades contidas nela.
Rayssa é graduanda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Uberlândia, foi assessora parlamentar em dois mandatos na Câmara de Vereadores de Uberlândia e é associada a Nossa Base. Foi líder do eixo Autonomia, Segurança e Trabalho para Mulheres durante a última experiência em gabinete legislativo e já atuou na Política de Prevenção Social à Criminalidade de Minas Gerais, no programa de controle de homicídios ‘Fica Vivo!’, referência internacional de política pública de atenção à juventude envolvida na criminalidade e proteção social a adolescentes e jovens moradores de áreas periféricas.