Por Rayssa Lemes Ordonhes
No dia 19 de junho de 2021, o Brasil ultrapassou a marca de 500 mil mortes em decorrência da Covid-19 no país. Dez dias antes, iniciavam-se as buscas por Lázaro Barbosa — o “serial killer de Brasília” — após o assassinato de uma família em Ceilândia, no Distrito Federal. Apesar de estes a princípio parecerem fatos isolados entre si, as formas de intervenção e repercussão diante de tais acontecimentos têm muito a demonstrar sobre nosso cenário político atual e os caminhos percorridos para que se chegasse até ele.
Às vésperas das eleições de 2018, alguns cientistas políticos já alertavam para a centralidade que a pauta da segurança pública teria na corrida eleitoral, especialmente para a disputa da presidência. Os posicionamentos das candidaturas diante da questão da criminalidade se configuraram em uma das principais vertentes da polarização, sendo frequentemente segmentadas no imaginário popular a partir de categorias como a do “pessoal dos Direitos Humanos” ou de simpatizantes do tradicional “bandido bom é bandido morto”.
De acordo com a pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira – Segurança Pública, divulgada em março de 2017 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), 80% da população vivenciou alguma situação de risco nos 12 meses anteriores ao estudo. Outro ponto interessante é que apesar de iniciativas sociais (subentende-se preventivas) terem sido apontadas como mais eficazes diante da violência, 85% dos entrevistados citaram ao menos uma medida de repressão ao ter que restringir suas sugestões; para 82%, o aumento da criminalidade está associado à falta de punição.
Quatro anos depois, o que se vê é a persistência da sensação de insegurança contínua, aplicada não apenas em relação ao crime propriamente dito, mas à saúde, ao trabalho, à renda e a uma gama de outros direitos básicos. Além dos desafios reais, há ainda o bônus das ameaças fantasiadas pela ideologia reacionária, como uma suposta “destruição da família” enquanto instituição social. Neste sentido o ‘bolsonarismo’ se consolida, em sua condição de governo e de influência, não como uma fonte de gestão pública de problemáticas sociais — como são a pandemia e a violência — mas um mecanismo de administração do medo e simulação de estabilidade.
Recentemente, foi solicitado ao Ministério da Saúde um parecer acerca da demanda do presidente em defesa da desobrigação do uso de máscara dentre os vacinados contra a Covid. Segundo o próprio Bolsonaro, “para tirar esse símbolo, que obviamente tem a sua utilidade para quem está infectado”. Em termos de análise de conjuntura no Brasil, a atenção à simbologia pode ter um papel tão crucial quanto para as incursões de Robert Langdon por entre os mistérios da religiosidade ocidental em O Código Da Vinci. Ficção à parte, aqui os símbolos operam — ou são atacados — de maneira sistemática e estratégica.
Com o caso de Lázaro, os “programas policialescos” de televisão têm registrado índices ainda mais altos de audiência. Essas atrações, em geral, desenvolvem um forte apelo às emoções do espectador e contam com apresentadores que não atuam nos quadros policiais ou de quaisquer outros órgãos oficiais de segurança, mas emitem opiniões incisivas sobre as matérias expostas. Um deles é Sikêra Júnior, do “Alerta Nacional”, cujo crescimento na carreira ocorreu em paralelo à ascensão da família Bolsonaro, com a qual possui estreita relação. Segundo a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tem apurado a postura federal no que diz respeito à pandemia, a empresa de Sikêra recebeu R$ 120 mil por campanhas publicitárias favoráveis ao governo. Tal qual o presidente, o apresentador detém seu símbolo próprio: o dedo em riste, apontado num tom de um convencimento acusatório e imponente aos olhos de quem o assiste do outro lado da tela.
Na apuração de crimes de grande repercussão nacional como os atribuídos ao serial killer, chama atenção também a persistência em uma vinculação religiosa que não ocorre apenas em um sentido amplo, mas com enfoque direcionado a elementos das religiões afrobrasileiras, por exemplo. Destaca-se que certamente não cabe a este texto um veredito sobre as motivações envolvidas nesses casos, mas sim uma reflexão sobre generalizações e estigmas que podem levar a associações embasadas não em evidências, mas estereótipos e antagonismos estimulados no âmbito político. Afinal, o fundamentalismo religioso de alguns nichos cristãos é ainda um dos pilares de manutenção do ideário bolsonarista — instigado por questões muito mais complexas do que críticas simplistas ao cristianismo ou especificamente à comunidade evangélica podem contemplar, como tem sido apontado exemplarmente por pesquisadores como Clara Mafra, que analisam a escalada do neopentecostalismo nas periferias e a atuação dele enquanto uma resposta prática a problemas como segurança e conflitos entre classes sociais.
Ao longo do tempo, muitos autores da sociologia, filosofia e história, dentre outras áreas, formularam questões sobre as conexões entre o Estado e a gerência das relações em sociedade. No contexto da pandemia, tem sido recorrentemente abordado o conceito de necropolítica, uma definição interessante para que sejam pensados os atrelamentos possíveis entre a política em suas diversas nuances, enunciados eleitorais, agenda de governo e segurança pública. Nas escolhas que se faz no que tange à compra de vacinas ou nos discursos de apoio às milícias, de fato estamos diante de um cenário de gestão velada também sobre a vida e a morte. Desde março de 2020, mês do decreto de calamidade pública, a narrativa de Bolsonaro e sua base fiel é voltada para a contenção do pânico, da “histeria” e de uma “sensação de pavor”, como ele mesmo afirmou durante pronunciamento.
Contraditoriamente o pavor é espalhado pelo próprio bolsonarismo, sob a roupagem do discurso de preservação de valores supostamente combatidos pelo campo progressista (quando em realidade não o são), ou distorção de fatos em pautas onde as perspectivas reacionárias e progressistas de fato entram em choque. O “Gabinete do Ódio” e a quantidade de recursos humanos, técnicos e financeiros dispendidos na máquina de propagação de fake news são uma amostra disso. O mal-estar com a China, referenciada enquanto expressão da idealizada e caricata “ameaça comunista” (e acusada até mesmo de disseminação proposital do vírus), também diz muito a respeito. Em sua caracterização sobre as bases normativas da manifestação do direito de matar atribuído a um soberano, conceito esse que é também ligado à ideia de uma necropolítica, Achille Mbembe define que “o poder apela à exceção, emergência e a uma noção ficcional do inimigo”. Se a análise dependesse apenas de um checklist sobre essa afirmação, o contexto político e social do Brasil estaria imediatamente contemplado.
Enfim, não nos esqueçamos do símbolo principal, agregador de todos os demais. Na “arminha com a mão” está representada, em sua supremacia, a gestão do medo cujo pressuposto é a coordenação seletiva do terror. Um poderoso aparato que promove a difusão e o enraizamento da insegurança ao mesmo tempo em que discursa fervorosamente contra ela, seja nos termos da crise sanitária ou da criminalidade. Como a vida imita a arte (e vice-versa), uma situação muito semelhante à agonia provocadora expressa no filme brasileiro O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho. No filme e fora dele, há a adesão de um público a uma oferta que propõe meios de garantia de segurança para o coletivo assustado, que passa a ter que conviver com as ambiguidades de uma proteção ilusória paralelamente aos incômodos e riscos da vigilância constante, assim como as contradições e mistérios de quem a organiza. Em realidade, não há uma oposição ao pânico generalizado, como disse o discurso do presidente no início da pandemia. Há, sim, uma escolha criteriosa de qual tipo de pânico se deseja fomentar como mecanismo de uma coesão social em prol da preservação do poder e aniquilação de inimigos concretos ou imaginários. É essa a mesma imaginação que alimenta a política do fingimento e da falsa estabilidade, representada na repulsa à máscara de proteção. Uma remodelagem das práticas características de uma guerra permanente — que, ao contrário das experiências imperialistas, é norteada contra o próprio povo.
Rayssa Lemes Ordonhes